domingo, 13 de abril de 2008

VOCÊ E A POLÍTICA

A política tem muitas faces. Por ser visceralmente social, ela reflete quase sempre a complexidade humana. Política, da raiz grega polis, que em português quer dizer cidade, pode ser entendida por ciência que estuda as formas como acontecem ou se estabelecem as relações entre as pessoas dentro de um aglomerado humano. As relações na sociedade são portanto políticas. Isso implica que não existem pessoas apolíticas, desde que essas vivam em grupo ou dependam ou dele dependam. Onde há mais de uma pessoa, existe alguma relação de força, de interesse, de espaço, enfim, de poder. Essas tensões, comuns à natureza gregária do homem, são primariamente a própria política.
Se entendemos por política as relações de força, de interesse e de poder entre as pessoas, então podemos dizer que até mesmo namoro é político. Amizade e família também, porque em todas essas relações há um jogo de interesses e quem domina na relação de forças via de regra tem mais espaço e mais poder. Isso serve para ficarmos sempre atentos às ações que acontecem em nosso meio, das mais íntimas as mais públicas. Daí porque devemos nos interessar pelo que acontece em casa, na escola, na rua, no bairro ou cidade etc. É importante saber quais são os atores que estão mandando nesses meios, se eles estão agindo de forma sensata, se deveriam estar ocupando esses espaços ou coisa que o valha. Se não deveriam, significa que a relação de forças está debilitada, nesse caso ocupou o espaço quem decidiu ocupá-lo, não quem podia. Certa vez, o historiador inglês Arnold Toynbee disse, com muita propriedade, que o castigo de quem não participa da política é que será governado por aqueles que participam. Nada mais lógico e, também, perigoso.
Aristóteles conclui, no seu Tratado de Política, que o homem é naturalmente social e, portanto, um animal inevitavelmente político. Negligenciar essa máxima é se negar a participar do jogo e, conseqüentemente, assinar a certidão de subalterno e de joguete dos interesses de quem faz política. E acredite, leitor, particularmente há entre nós poucos que participam buscando o bem da coletividade.
Se está claro que a relação de forças firmada no namoro, em casa ou em qualquer outro espaço reflete interesses, devemos então nos perguntar quais interesses subjazem a essas relações: minha namorada fez-me desistir de ir a uma reunião ou festa, mediante um encenação emocional, com base em quê? Minha mãe, pai ou irmão mais velho impediu-me de assistir a um filme ou freqüentar um amigo, com que interesse? O prefeito suspendeu a coleta de lixo de determinada rua, com qual intenção? Perguntar-se sobre os motivos das ações humanas na sociedade, procurar as respostas e julgá-las é o primeiro passo para desenvolver consciência política. Ter consciência política é ser capaz de se situar no meio social de modo a perceber os interesses que estão embutidos nas relações de forças, com o fim de fazer escolhas e tomar decisões que não nos sejam lesivas.
Há dois tipos de consciência política: a consciência que se dirige a soluções imediatistas e individualistas, que num plano particular parecem não ser lesivas a quem opta por elas, mas que, resultantes de uma interpretação simplista da relação de forças, se afiguram mais como uma falsa consciência, já que num plano mais amplo atingem o ator dessa consciência. Tomemos como exemplo o comportamento do empresário que, pensando apenas no lucro, triplica o preço dos produtos acirrando a degradação social e econômica das quais será refém.
O outro tipo de consciência é aquele que desloca para a leitura das relações de força, as noções de coletividade e de justiça; que analisa o jogo de poder tendo em vista o horizonte macro-social e mede suas escolhas e ações, portanto, com base no que for menos lesivo para o meio no qual esta inserido e do qual dependem a sua sobrevivência, o seu prazer, sua alegria e sua qualidade de vida. Talvez fosse isso que preconizava Aristóteles em Ética a Nicômaco, quando diz que Mesmo se houver identidade entre o bem do indivíduo e o da Cidade, é manifestamente uma tarefa muito mais importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade... Pelo que se depreende, nesse momento, o filósofo condiciona a ética à política, quer dizer, o ethos político importa mais que o individual.
Por trás das duas formas de consciência a que nos referimos há o que chamamos de ideologia. O exemplo que demos de consciência individualista do empresário, apóia-se nas idéias de que o que vale é lucrar a qualquer custo; que é mais esperto quem engana os outros; que importante é ter muito dinheiro e os outros que se danem. Já o ideário que sustenta o que chamaremos de consciência do coletivo é o de divisão eqüitativa dos benefícios sociais, de igualdade social, de justiça etc. Aqui temos a ideologia como conjunto de idéias que constituem tipos de consciência. Mas há um conceito mais restrito de ideologia, aquele sugerido por Marx e Engels em A ideologia alemã, que explica a ideologia como uma espécie de inversão. Os dois filósofos identificam ideologia com a separação que se faz entre a produção das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas. Essa separação propicia aos donos do poder fazer com que suas idéias sejam as de todos, invertendo a noção de realidade dos que não são partícipes do poder. Essa inversão é o que envolve, por exemplo, o trabalhador da roça com um manto de ilusão e o faz votar em um grileiro, convicto de que as idéias e o modus vivendi daquele sujeito se equiparam a sua realidade ou refletem o futuro do seu modo de viver, numa grosseira inversão de valores que aprofundará ainda mais as diferenças entre sua classe e a dos grandes proprietários rurais. Esse tipo de ideologia é reflexo da alienação. É produto da inconsciência, da impossibilidade de julgar a realidade das relações de força.
Cabe esclarecer que não se pode ver o mundo sob o prisma da luta de classes sem correr o risco de reduzi-lo a uma ilusão maniqueísta, que escamoteia a complexidade das contradições e as particularidades das relações de poder. O conceito de Marx e Engels, amparado por uma visível clareza lógica, na medida em que é generalizado propicia o surgimento de uma compreensão muitas vezes tosca e simplista da realidade.
Como disse, a arte política tem várias facetas. Fazer política significa identificar e entender as relações de força e perceber-se como ator dentro desse jogo. Quem não joga o jogo da política não entende suas variações. Há por exemplo uma distinção entre fazer política no parlamento e fazê-la na comunidade. No parlamento, ou seja, nas diversas Câmaras e no Senado, dado à limitação do espaço, os grupos (partidos) negociam entre si ou se apóiam tendo em vista cada qual sempre sustentar a sua hegemonia naquele espaço, o que garante mais vitórias dos interesses que ele representa ali dentro. Se um vereador (vamos imaginar) que representa os interesses populares no restrito espaço da Câmara se alia com algum outro vereador que historicamente não compartilha daquela práxis, assim o faz (se for coerente) para garantir o espaço dos interesses populares dentro da Câmara. Para construir a hegemonia do seu grupo ideológico nas decisões daquele espaço. Porém, fora do meio parlamentar, os únicos aliados com quem ele poderá contar serão o povo e o grupos que participam do mesmo campo ideológico. Alianças no espaço social são quase sempre muito perigosas na medida em que podem confundir a interpretação da relação de forças, levando a uma percepção invertida dos atores e interesses que estão em jogo. Trocando em miúdos, uma coisa é fazer política partidária na Câmara, outra é fazê-la na sociedade. É preciso dizer ainda que há aqueles políticos nos parlamentos que fazem manobras internas tão somente para obter benefícios pessoais, esses constituem a pior espécie de gente que pode existir na sociedade.
Já deu para perceber, amigo leitor, a importância que tem a sua participação consciente nas relações sociais. Se você não participa, ou se participa sem se perguntar com quem ou com o que está lidando, correrá risco de ter seu destino e o da sua comunidade decidido por grupos ou pessoas que agirão para mantê-los eternamente com destinos de ignorantes, miseráveis e dependentes. Em outras palavras, conforme dissemos acima, é preciso estar atento para interpelar a realidade o tempo todo. Jamais devemos também nos satisfazer com as respostas imediatas que damos a nossas perguntas. É preciso cautela e certa dose de desconfiança. Devemos estudar nossas conclusões, compará-las com outras, torná-las elementos de discussão entre amigos, vizinhos, professores e familiares a fim de checar sua pertinência. Nesse momento, destaca-se então a necessidade de leitura teórica, técnica e filosófica. Um cidadão, nome que se deveria dar para a pessoa que assume sua responsabilidade política, é necessariamente um leitor do mundo, mas o é também de diferentes textos informativos, formativos e estéticos. Antenado com a realidade do mundo, sob todas as formas, é que ele cada vez mais qualifica sua capacidade par mudá-lo, sua capacidade para adequá-lo aos propósitos e desejos da sociedade como um todo, aos seus propósitos portanto.
(alan oliveira machado, 2005)

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A EXTINÇÃO DOS ESQUERDOSSAUROS

Alan Oliveira Machado

“A pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar.” (Boaventura Sousa Santos, 2006)


Não se trata necessariamente de voltar à esquerda. Voltar à esquerda, simplesmente, pode nos levar a entender que os métodos da esquerda sempre foram os melhores e sempre serão e que o retorno seria uma espécie de exorcismo para expulsar demônios capitalistas do corpo, o que não é verdadeiro. É preciso que se retorne à origem, não para ser autêntico ou puro, não para reproduzir a monocultura do saber, mas para se reposicionar na atualidade, de forma crítica e coerente, dentro de um campo de pensamento e prática de esquerda que se constrói cotidianamente na leitura e releitura das práticas e demandas que a contemporaneidade produz, sem necessitar de repetir fórmulas e práticas que já não se ajustam à realidade das lutas.

Sabemos que não é nada fácil se localizar dentro da esquerda sem cair numa lógica que está na base de todo o pensamento ocidental moderno, qual seja a mania de linearizar o tempo e a história e dicotomizar as relações. Esse vício mental funciona como uma rede que só captura o que é compatível com sua trama. É como se fôssemos pescadores que utilizassem uma rede de buracos muito grandes de forma que só conseguíssemos pescar tubarões, levando-nos a crer que no mar só existem tubarões, apagando, portanto, toda a diversidade. Assim funciona essa maneira de entender a realidade, como diria o sociólogo português Boaventura Sousa Santos, a reboque de uma razão metonímica, ou seja, que reduz o todo à parte, que reduz a realidade tão somente ao que conseguimos prender em nossa razão.

Em sua complexidade, historicamente, esquerda e direita são campos de interesses não muito bem demarcados, porque, erroneamente, demarcamos esses espaços por meio de estereótipos (há algo mais superficial?). No dia a dia, pessoas que se situam na esquerda desenvolvem novas práticas revolucionárias, fora da lógica linear e maniqueísta da esquerda e isso irrita e gera ódio, sobretudo nos esquerdossauros, naqueles que seguem apenas os estereótipos (aqui, esquerdossauro não é uma questão de idade, mas de mentalidade). Ou o militante se enquadra no perfil imaginário estereotipado, ou é rechaçado. Como se a vida e a realidade social tivessem dois lados fixos, um lá e outro cá e as pessoas se não estão cá inquestionavelmente estão lá. Nos anos sessenta muitos esquerdistas criativos foram tachados de reacionários e pelegos, em nome dessa compreensão redutora e equivocada, no que diz respeito ao que deveria ser o comportamento do esquerdista.

O que esses esquerdossauros não entendem é que o que se faz e se diz tem contexto e é preciso entender esse contexto antes de mobilizar a rede redutora, se é que precisamos de rede redutora. Como entender o movimento da realidade se recusando a enfrentá-la no seu movimento complexo? Os critérios superficiais para se decidir se alguém ou algum movimento é de esquerda ou direita são ridículos, não se sustentam na dinâmica da realidade, levando os esquerdossauros, feito evangélicos, a se fecharem em um mundinho esquizofrênico e paupérrimo em quase todos os sentidos. Enfim, para combater a falsa esquerda, meus camaradas, não é preciso virar um fóssil vagando cegamente na tempestade cotidiana ou um membro de grupelho encolhido sob o guarda-chuva da mediocridade. HÁ BRAÇOS! (5-10-07)

LEITURA VIRTUAL: O QUE É ISSO?

Luciano Rodrigues Lima (Doutor em Literatura, PTrofessor titular da UNEB, Professor adjunto da UFBa)

Chama-se leitura virtual a leitura do texto na tela do computador (PC, lap top ou palm top), ou do texto projetado por um data show, projetor de cinema, tela de televisão ou mesmo um simples retro-projetor. O significado da palavra virtual é controverso (Gilles Deleuze, um pensador francês, alerta que o virtual não é o irreal, mas algo como o devir do real, uma espécie de futuridade do real), mas podemos falar de algumas de suas características: é algo que se revela como uma imagem do real, mas não possui uma corporeidade permanente; projeta-se como imagem e som perceptíveis, mas é resultado de um processo de codificação eletrônica e não do movimento de corpos reais (a música gravada é virtual, a voz ao celular, também, assim como o próprio texto impresso possui algumas características virtuais, pois representa as palavras que não estão sendo pronunciadas por nenhum aparelho fonador de verdade).

A imagem virtual necessita de um componente cultural para a sua percepção e compreensão. Muitos animais não reagem à comunicação virtual pois não são capazes de compreender a cultura e o significado das invenções humanas (embora possuam sua própria cultura), enquanto outros, como os macacos e, às vezes, gatos, percebem e reagem diante das imagens virtuais, numa surpreendente capacidade de adaptação cultural.

Voltemos, contudo, ao texto verbal virtual. A internet, o texto online, é, sem dúvida, o maior acervo de textos verbais para leitura virtual, cabendo citar, também, as edições eletrônicas de obras e textos de qualquer natureza, em CD-ROM, pen-drive, MP3, MP4, etc. A leitura desses textos se dá sempre em tela, mas essa concepção de leitura é avançada e o texto verbal pode ser associado a outros recursos midiáticos, como som, imagem em movimento, efeitos especiais de diversos tipos.

Se me perguntam se o texto virtual substituirá o livro, no futuro, respondo que não sei. O futuro da tecnologia virtual é imprevisível. Mas penso que o texto virtual possui vantagens em relação ao texto impresso. O texto virtual é mais ecológico pois não necessita de papel, material atualmente feito de celulose vegetal. Também não ocupa quase nenhum espaço, algo tão importante nas reduzidas moradias das cidades grandes. Mas a maior vantagem do texto virtual é a sua praticidade, explicada através de aspectos como a atualidade, a velocidade e a acessibilidade. O texto virtual é sempre atualizável, como os dicionários, glossários e edições de obras online. As edições eletrônicas de jornais e revistas são atualíssimas. Mesmo os textos pessoais são mais rápidos, bastando comparar a carta tradicional e o e-mail. O acesso ao conteúdo dos textos virtuais (corpora para pesquisas, edições eletrônicas de obras completas, referências bibliográficas e referências terminológicas) é sempre mais rápido. Se estou lendo, por exemplo, a obra completa de Freud em edição eletrônica e desejo pesquisar o tema “inconsciente”, a edição me dará a indicação de todas as páginas, livros e artigos em que o termo aparece. Além disso, o texto em tela é digitalizado e pode ser copiado, reformatado, enviado para qualquer outro computador em qualquer parte, transposto para outros meios eletrônicos e, caso o usuário ainda possua apego às coisas matérias em si, como aqueles leitores fetichistas que adoram cheirar os livros, o texto virtual pode ser impresso.

Penso que o Brasil, principalmente o MEC, os órgãos que lidam com cultura e ciência, as universidades, as editoras e mesmo aqueles que comercializam qualquer tipo de texto escrito, ainda precisam discutir uma política para disseminação do texto virtual. Sabe-se que existe, atualmente, mais leitura virtual do que leitura de texto impresso e mais lan-houses do que bibliotecas, mais e-mails do que cartas. E penso, ainda que existe mais escrita virtual do que escrita em papel. A escrita virtual é atraente, pois é assistida por revisores ortográficos, não existe partição silábicas, alerta-se contra repetição de palavras, pode-se corrigir infinitamente e já existem revisores gramaticais que auxiliam e alertam quanto às concordâncias verbal e nominal. Sem contar que se pode pegar qualquer informação online sobre nomes próprios, fatos históricos, obras, etc, para se utilizar na própria escrita.

De volta à questão das políticas públicas, parece existir, ainda, principalmente nas universidades, um forte preconceito contra o texto virtual, principalmente o texto através da internet. Para muitos países, como o Reino Unido, a Austrália, os Estados Unidos e o Canadá, a internet já é o espaço em que toda a cultura acumulada (todos os textos clássicos de todas as áreas do conhecimento) está disponível gratuitamente em língua inglesa. É como se fosse a grande biblioteca de Babel, como a concebeu o escritor argentino Jorge Luis Borges. Enquanto esses países disponibilizam seus textos em suas línguas, o que angaria prestígio para suas respectivas línguas e culturas, no Brasil ninguém disponibiliza nada. Faltam iniciativas e sobra desconfiança.
Se se quiser cobrar pelos textos, existem mecanismos como as livrarias virtuais, a exemplo do Questia, um portal onde se paga via cartão de crédito e se tem acesso a milhares de livros novos. Ou, buscam-se patrocinadores para os sites de leitura virtual. A pirataria eletrônica pode quebrar essa resistência ao texto virtual e tornar digital e gratuito o texto daqueles autores mais resistentes ao meio virtual. Assim, não querendo perder um pouco eles acabarão perdendo tudo. O texto virtual, no meu entendimento, democratiza a leitura.

Imprevisível, o futuro do texto virtual e do texto escrito (discussão já antecipada em Apocalípticos e integrados, de Umberto Eco, mas também preocupação de pensadores baianos como Antônio Risério, em Ensaio Sobre o Texto Poético em Contexto Digital) interessa a todos os leitores. Encerro este breve texto (virtual) com uma frase do pensador Jean-François Lyotard, para reflexão: “...no futuro, tudo que não couber em tela de computador será descartado”.

A TERCEIRA CEGUEIRA

REFLEXOES SOBRE A RELACAO LETRAMENTO E CULTURA ORAL


Cosme Batista dos Santos[1]



Este texto que dou o titulo de a terceira cegueira[2] é parte de uma seqüência de textos curtos que venho produzindo sobre determinados conceitos e orientações teóricas de pesquisa sobre o letramento e que, por diversas influências, têm sido utilizados na construção da paisagem conceitual de trabalhos sobre o letramento ou de estudos das praticas sociais mediadas escrita. Como já foi dito, este texto, particularmente, discute uma primeira cegueira que caracteriza a cultua escrita na sua relação com as outras modalidades culturalmente situadas de significação. Acrescenta uma segunda cegueira que, historicamente e geograficamente, impede o trânsito entre a cultura oral e a cultura letrada, assim como entre os seus sujeitos e praticas. Trata ainda de uma terceira cegueira que, nos nossos dias, parece surgir como produto de certas leituras situadas na fronteira ou na interface entre tais culturas.

A primeira cegueira é atribuída, basicamente, à ciência moderna e à cultura escrita, essa última, por ser o canal por excelência dos bens culturais e científicos dos segmentos dominantes da sociedade. A cultura letrada não viu, nem produziu os instrumentos que permitissem o acesso ao conhecimento prático, à cultura oral, às maneiras de fazer e de dizer dos subalternos, dos camponeses e dos operários. Não há na cultura escrita dominante, o espelhamento das ações periféricas dos homens simples, da sua cognição, das suas manifestações culturais e sociais, das suas lutas e dos seus testemunhos históricos.

A segunda cegueira é atribuída, basicamente, ao senso comum e à cultura oral, essa última, por ser o canal diverso de produção de sentido e de circulação dos saberes culturalmente e tradicionalmente produzidos nas/pelas diferentes tribos e comunidades do mundo. A cultura oral ou, em outros termos, os grupos que não possuem o poder da leitura e da escrita, são historicamente excluídos do acesso aos sentidos, saberes e ações que a cultura letrada permite acessar, por exemplo, como o faz as minorias dominantes que possuem a letra. A falta do acesso aos bens simbólicos da cultura letrada de elite não permite com que os subalternos, os ditos pouco letrados, acessem o trabalho em condições mais especializadas e os conhecimentos e códigos letrados úteis á sua sobrevivência, como por exemplo, a capacidade de transitar em outras culturas e novas realidades históricas, geográficas e lingüísticas, por exemplo. A segunda cegueira, nesse sentido, se configura pela ausência de uma “luz” para o exterior da cultura oral e que através dela os ditos poucos letrados possam migrar dos seus lugares para outros ainda então desconhecidos; e que através dela possam “iluminar”, evidentemente, não em termos absolutos, o mapa do conhecimento, do lugar e da história alheios, dos bens produzidos por tantas gerações, em tantos lugares distintos e distantes.

A terceira cegueira é atribuída aqui à tentativa de dar sentido ao dito fim da fronteira entre a cultura letrada e a cultura oral, sinalizando o desmonte das dicotomias e das polarizações entre o letramento e a oralidade, por exemplo, muitas vezes sob a proteção de um revestimento meramente estético. Essa operação de desmonte dos pilares sólidos dessas culturas em muito pode estar contribuindo para o surgimento disso que estamos chamando de uma terceira cegueira e que parece ganhar espaço em novos quadros ou paisagens conceituais que estão se formulando na base de explicação de novos trabalhos sobre o letramento situado. Esse componente teórico, a nosso ver, se não resulta de um rigor analítico tão necessário à investigação em linguagem, poderá também se encerrar no mero revestimento estético categorizado pelo pressuposto. Em outros termos, poderá obscurecer ou negligenciar, por exemplo, as interferências mútuas entre as culturas que certamente nem sempre apresentam a mesma configuração, grau de circularidade e traços que se (des) estabilizam entre elas.
A rigor, a mistura cultural e lingüística não lembra, pelo menos em termos absolutos, a diluição de líquidos em um mesmo recipiente, conforme parece sugerir algumas análises mais empolgadas do hibridismo na relação cultura oral e a cultura escrita. Esse tipo de análise especulativa não resolve o problema das duas cegueiras já descritas, não empodera nada, nem ninguém, apenas poderá institucionalizar uma nova, uma terceira cegueira.

[1] Doutor em Lingüística Aplicada, Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Pesquisador do Grupo Letramento do Professor –IEL/Unicamp.
[2] Texto inspirado nos debates ocorridos no IV Seminário do Grupo Letramento do Professor ocorrido em agosto de 2007, no Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/Unicamp. É também inspirado na obra de Boaventura de Sousa Santos sobre a sua “Crítica da razão indolente” (Santos, 2002). Devo adiantar também que são reflexões que compartilho com muitos outros, mas que pretendo levar adiante e até ampliar, sem a necessidade de citações explicitas.

domingo, 21 de outubro de 2007

terça-feira, 25 de setembro de 2007

semiosfera

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